Uma noite, uma canção de ninar, uma orelha cortada.

La Berceuse


A ligação entre La Berceuse e a orelha de Vicente Van Gogh não é assim tão clara para quem não conhece detalhadamente sua biografia. Acontece que Van Gogh se automutilou enquanto trabalhava nesta tela na véspera do natal de 1888.

La Berceuse é o retrato de Augustine Roulin – a matriarca da família Roulin, que Van Gogh outras vezes já havia pintado, além de outros membros da família. Vincent teve a ideia para o quadro quando conversava com Gauguin sobre o livro Pescador da Islândia, de Pierre Loti. Vincent queria pintar «pescadores, que são ao mesmo tempo crianças e mártires, (e) ao vê-lo do seu barco de pesca (...) sentissem que estavam a ter de novo a antiga sensação de estarem no berço e se lembrassem das suas canções de embalar».

Realmente, no quadro não há nenhum barco mas sim uma senhora que segura nas mãos o cordão que embalava o berço de seu bebê. O próprio berço não está no quadro, e o cordão é bastante sutil para quem desconhece a mecânica para embalar um objeto que não está presente no campo da representação – assim nossa visão é também de quem está a se embalar, de pescador em mar agitado.

Explicando mais tarde para Gauguin, Van Gogh afirma que tinha certeza « de que se puséssemos essa tela tal como está num barco de pesca, mesmo na Islândia, haveria alguns pescadores que iam sentir-se dentro do berço». Também não era este conforto que Vincent procurava para ser acalmado?

O conceito que Van Gogh havia criado para La Berceuse não se resumia a isto, ele intercalou inúmeras referências da história da arte e pensamentos religiosos, buscava, até mesmo, que esta tela fosse equivalente a uma imagem do cristianismo primitivo. Contudo, o que se via realmente era um retrato de uma mulher em uma cadeira, notoriamente, um retrato com cores ousadas (de fato, esta tela causou impacto em muito dos artistas mais jovens; Matisse, Edouard Vouillard e Pierre Bonnard, mas mais sobre suas características formalistas, e não conceituais).

«Os vermelhos que avançavam para o puro laranja, de novo se afirmam nos tons de carne e vão até os crômios, passando pelos rosas e se misturando com verdes-azeitonas e malaquite».  Van Gogh havia ficado satisfeito com o resultado, mas foi essa complexa combinação de cores que o levou a procurar o olvido na embriaguez (mais o medo de que Gauguin abandonasse a casa, que algumas semanas ele havia o convidado para montar um ateliê coletivo).

Naquela fria noite em Arles, no sul da França, Van Gogh iria cometer o grande ato de loucura pelo qual ficou parcialmente conhecido: cortar uma orelha (ou apenas o lóbulo, como aponta alguns historiadores). Gauguin conta que havia sangue por toda casa, inclusive em frente a La Berceuse, o que significa que Vincent estava olhando a tela enquanto se mutilou, ou esteve lá depois de se mutilar.

Contam que na sua crise de loucura antes de cortar a orelha, Vincent Van Gogh, que normalmente não cantava, tinha cantando uma velha canção de ninar, porque imaginava «a canção que a mulher que embalava o berço cantava para adormecer os marinheiros».

A história que se segue é bastante conhecida; Van Gogh embrulha o pedaço da orelha e entrega para uma prostituta. Mas o que teria acontecido com Van Gogh para fazer algo tão invulgar e bizarro?
Sempre que questionado, Van Gogh preferia não responder sobre aquela noite. 
Juca L.