Séries de Camila Cidreira expostas em "Tanta Imensidão" 
A menina com asas sentada na relva e a leveza do corpo de uma bailarina apoiada ao cérebro, nas telas de Camila Cidreira, indicam a descida daquilo que causa a suavidade na existência. Mesmo que ainda preso ao peso do cotidiano, da razão opressora, é possível saltar do paradoxo de um cotidiano Vs. a arte de voar. O corvo rosa é a descida do sagrado ao cotidiano, que suaviza o simples olhar de uma janela em algo de extraordinário esteticamente.

O quadro em que há uma bailarina equilibrada ao cérebro é revelador ao conteúdo da obra completa. Não é possível suavizar pela razão, ou de modo afirmativo: somente se suaviza pelo delírio. O delírio é a emoção da alma, que é possuidora de asas, e, portanto capaz de voar. O corvo não tem haver exatamente com a realidade, mas com o delírio do corpo, a imaginação, que suaviza o real.

O corvo rosa é a desconstrução da imaginação/fantasia como uma perturbação patológica da alma. O corvo não é mais aquela ave fúnebre, obscuro como a treva cristã, mas agora é um pássaro rosa e companheiro inseparável de uma menina. Menina ainda encarnada a sua inocência, ou seja, o humor da criança que faz dela um ser demasiadamente imaginativo.

O corvo que ao amanhecer do dia vêm visitar a menina, ainda vestida com a roupa preta da madrugada, são idênticos, a menina ao ver o corvo se encontra na verdade consigo mesma. Imagine, qual é a primeira cor do dia? Quando o dia amanhece é um tom rosado no céu, pueril como um recém-nascido, não é assim? O corvo entontece de tanto amor na aurora e pousa em si.

Andar, voar e nadar sendo possíveis em uma mesma espécie, teria que existir um ser composto de asas, barbatana e patas. Não como utopia, mas no direito de sonhar no mundo real, na permissão de um dia-a-dia suavizado, com a tolerância do não ser para o existir. Camila Cidreira, que já têm esse sobrenome de chá, ao desenhar causa um profundo relaxamento, em um assunto que para muitos seria como ir ao enterro do amado.

Darlon Silva,
Poeta.

obra de Maurício Teixeira, exposta na exposição "Tanta Imensidão"

Em “Mundo das Águas”, Maurício Stone capturou o último suspiro da água, a ferocidade de um mundo rodeado de vulcões em erupções, o chão seco, o Deus desfigurado, o céu em sangue, a anarquia, o ser para a morte, metal em fusão, as artérias volumosas, o segredo do salto mortal, estado de guerra e tudo que cause fervor a nossa civilização escaldante.

A agonia da água diante ao vulcanismo industrial não é o mesmo sentimento de erupção das lavas na lei natural, mas talvez seja um apelo ao céu escuro por inundação, que assim se destrua e volte a ser, retroceda. O vulcão ativo em questão na verdade é a anarquia da nossa civilização, que burlou com todas as erupções dos divinizados elementos da natureza. O vulcão pintado tem a mesma forma retangular das indústrias que expelem gases poluidores ao ar e secam a vida dos rios com seus imundos dejetos.

De uma erupção nasceu o homem civilizado, que antes não sabia o que era o poder de manipulação do ferro. Muito provavelmente a metalurgia, que originou a história da civilização, tenha surgido com o vômito de algum vulcão e depois o homem imitou com outros meios. O vulcão ensinou segredos ao homem, e eles perverteram a ideia em agricultura desenfreada e fabricação de armas bélicas. Esse foi o primeiro passo para a institucionalização da propriedade exagerada de alguns e de todas as viciosas vaidades.

O rosto da água anuncia a morte, e quase todo o corpo já está derretido pelo calor do magma, que já desce do cume da montanha secando o chão, acompanhado de muito fogo e negras fumaças, como nas chaminés das indústrias. No “Mundo das Águas” o chão é seco, tudo é quente, sanguíneo e colérico, contrariamente o nome do mundo, que é dado pela nítida falta e não pela central presença do azul, da fleuma. O céu é negro e contaminado de chuva ácida.

A boca entreaberta parece gritar ao quente de todo o vermelho da tela. O vermelho da lava e também do céu carregados de nuvens negras. A boca e as nuvens indicam a chuva torrencial que esta para acontecer. Grande chuva pressagia inundações planetárias e esquecimento de um mundo antigo, perturbado pelo mau uso do segredo revelado pelas calorentas veias anárquicas da terra, e das feridas insecáveis de um mundo enfermo.

Em Mundo das Águas, Maurício pretende cicatrizar esse mundo – recorre à água para lhe purificar. A inundação que esta preste a ocorrer purificará todas as desmedidas de nossa civilização. No céu obscurecido, há uma forte presença da água em potência, onde o retorno às origens da lei natural será possível pela rebeldia da chuva. Quando a última gota do céu cair, a trovoada cessar e a terra seca se tornar mar, o absoluto estará de volta, os vulcões dormirão, até a chegada de um novo jovem anarquista como este.


Darlon Silva,
Poeta.

o artista em frente ao díptico "Mundo das Águas"

Obras de Luana Vellame expostas no "Tanta Mansidão" - Bahvna Espaço Cultural

A mulher com seus vários amuletos e marcas de uma iniciada dos mistérios lunares se mantém com olhos sempre fechados, mas por quê? Trata-se de uma mulher possuída pela luz noturna, que se abrissem os olhos faiscaria com tanta iluminação, capaz de cegar quem a olhasse? Tudo indica que só com a habilidade do veado de visão noturna poderia assim olhar sem medo, encarar.

Na escuridão da noite só encara aquele que se habituar a nascer, florescer, morrer e renascer como a Lua, ou seja, aquele que está sempre em transição a alguma coisa. A mulher para ficar cheia novamente, precisou voltar a andar de quatro patas, regredir a sua espécie animal. A mulher e o veado são o mesmo em fases diferentes.

Menina, mãe e anciã, assim os Celtas definiram a Lua. Ela engatinha quando menina, fecunda em lua cheia e é sábia na velhice. Tal como se comporta uma mulher que menstrua, tatuagem indissociável no corpo da mulher, a lua segue o ciclo de nova, cheia e minguante. A chave pendurada no pescoço, todos os amuletos, é a possibilidade de abertura do ressurgir constante da mulher.


A mulher é alegre e triste ao mesmo instante, porque tem que conviver com o nascer e o morrer a cada tempo. As tatuagens guardam o código da transição, como o código genético presente em um grão, que mesmo sendo algo morto não se esquece de renascer em uma porção de terra. Um galho no pé, triângulos e luas.

Darlon Silva,
Poeta

Obra de Tita Anjos exposta na exposição "Tanta Imensidão" no Bahvna Espaço Cultural

Mais além do vermelho sanguíneo e da tapeçaria florida pelo branco do crochê, um ser mitológico, uma parte mulher a outra pássaro, ambas criativas. Essa mulher zoomorfizada aterroriza como a Hidra de Lerma, que ao cortar uma cabeça surge assim duas, e que ao ser queimado pelo vermelho do fogo atrás, restará só a última e imortal cabeça, a da própria artista que fiou a tapeçaria.

Tita Anjos é a mulher coruja, noturna e melancólica como uma sereia. Carrega o peso do tempo em seus ombros, em uma vara flexível de bambu, que hora tende ao côncavo e ao convexo, igualmente ao cantado na voz trêmula de Bethânia. O bambu que em sua terra faz rodopiar emoções do sublime ao terror no meio do ano. Bambu que apesar de permitir o excesso e a falta, no fundo é a moderação que o tempo encarrega de ensinar aos sábios.

A coruja é a ave da sabedoria porque conhece a noite, enquanto os demais dormem, é a encarregada de fazer a vigília dos sonos. A coruja conhece o bem e o mal que se desvela com o tempo, por isso é um animal que traz tantos presságios. O conhecimento futuro seduz como uma flor ou o corpo de uma mulher, mas apenas o sábio vai conseguir ficar sereno ao ver as pernas de uma mulher e não atacá-la e ser ferido pelos espinhos.


Cada ponto do bordado é como o fuso que gira no joelho da mulher fiandeira do destino. As mulheres do Recôncavo, que herdaram o tecer cotidiano dos seus ancestrais, são todas como as Parcas gregas, possui dons muitos especiais, porque são filhas da noite. A voz inesquecível de Bethânia, cantando “a matriarca da Roma Negra” é o fundo musical desse meu olhar sobre o quadro, ou melhor, meu olhar sobre Tita Anjos.

Darlon Silva,
Poeta

La Catrina de Damapejú exposta no EM México

O traje noturno de uma noiva cadavérica é florescido pela luz da lua. O vestido lúgubre que cobre a vida de pulsão inferior, amenizado pelo frio interno,  constitui o aspecto esquelético de La Catrina. O amor da caveira que vai se casar é o avesso da amada que se une ao amante em pleno sol do meio dia. O amor de La Catrina é o contrário do fogoso, é frio, sombrio, mórbido e úmido.

A morte é o fenecimento das folhas no inverno e o que segue disso, como o rio que desaparece com o gelo. O silêncio na claridade da lua noturna que ofusca os olhos carnais. Não há carne, somente o esqueleto, e os ossos é a própria carne. O vestido não poderia ser como o branco das virgens, já que se trata da própria virgindade em si, do que torna as coisas que são virgens temporariamente.

Já que se desfez da sensibilidade da carne, em prol do amor ao absoluto, a escuridão da noite preenche o coração de La Catrina. A morte do ego engradece o vestido da noiva e é intrínseco a jornada da união com o amado. A cauda do vestido é o regresso a origem da luz. A parte frontal é o tapete com seus chakras que permite a simetria do retorno.

Quando a luz da lua aparece refinando o dia dos finados, celebra-se a noite de um calor friorento, a comemoração da tristeza e a reversão das perdas em encontro com o absoluto. A lona preta celebra todas as cores adornados no rosto e chapéu de La Catrina.

No vestido sombrio de La Catrina João Damapejú, nos remete ao lunar, mais alto e fúnebre amor, longe de qualquer iluminação que não seja o da poesia das catacumbas. A tessitura minuciosa do traje revela um artista capaz de tecer o lado oculto da noite, que aos despreparados seria algo aterrorizante.

Darlon Silva,
Poeta.

Performance apresentada na abertura da exposição

As contorções do seu corpo, a roupa com o tom da sua pele, as formas arredondadas, a pintura triangular do seu rosto e o gozo. Quando Jaiton Santóz expressou a performance que culminou no gozo oral, os visitantes se deslumbraram com o significado do que toda a exposição apontava. O gozo oral além de ser o clímax da exposição, provocou uma atualização da grandiosidade do que a estética do feminino tratava, em uma espécie de síntese do sexo, corpo e liberdade.

O corpo se confrontou com o dois-em-um, com a sua dialética, pois o plural é a essência indissociável do sexo. O plural é a essência do feminino, que é a lei erótica da terra. Note também nas pinturas, que os corpos femininos são múltiplos ou vêm acompanhados de uma imagem dupla, dois pares de pernas, de bundas e de seios em um mesmo desenho. Só o feminino poderia provocar um gozo que pudesse ser jorrado, como a planta que precisa da terra para brotar.

Jailton Santóz desenvolveu o feminino nas telas com o corpo da mulher, enfatizando o múltiplo das suas formas e dando movimento a matéria. Na multiplicidade de corpos nas imagens, forma a cópula do dois-em-um, daí, se abstrai a ideia de que na livre busca do sexo, a mulher se apossa de uma orgia consigo mesma, na tentativa de fazer companhia a si. O sêmen só é fecundo no envoltório da presença total do corpo da mulher.

A utilização do preto e branco já tem uma função dialética bem definida. Trata da dualidade existencial do eu consigo mesmo, que é a favor e oposto a si. O preto e branco é a contradição que se revela em um mesmo corpo, a claridade e a escuridão da busca da liberdade orgástica, a consciência e a inconsciência dos atos sexuais, etc.

As formas onduladas permitiram a reunião dos corpos. Uma figura composta em partes distintas e em todo uniforme, é o todo e as partes simultaneamente, como se pensa a ideia de um cavalo alado sem problemas em uma intelecção. As mulheres se adicionam umas as outras e formam outras configurações.

Até mesmo os aperitivos da vernissage haviam um sentido elaborado na estética do feminino. Os sequilhos tinham formas de vaginas, nádegas e seios. A digestão dos signos femininos pelos visitantes, dialoga subjetivamente com a ejaculação pela boca na performance. O gozo oral representa a libertação do fálico aprisionador através de um intenso prazer para a mulher.


Darlon Silva,
Poeta.

+ fotos em: http://goo.gl/ogPnJP

O que sabemos de nós mesmo sem Todo o calor que me falta? Ramon Gonçalves nos lança a mais enigmaticidade no símbolo indecifrável do Coyocán, sob a luz de Vênus em áries. Ramon reivindica que pensemos o homem em seu deserto metafísico, então acalmemos os ânimos, estamos em um território selvagem e escuro. Comecemos nossa análise.

Coyoacán, da série "Todo o Calor que Me Falta" (2014) - Ramon Gonçalves

Pensemos! O que é o homem que pensa? Será uma amigável ovelha como no evangelho ou um lobo da estepe fadado em viver sua solidão? A solidão do lobo é silenciosa e noturna. Que terrível é a vida do lobo que não segue nenhum pastor, porém não se pode negar que é uma vida excitante. Nenhum cão que acompanha o pastor se iguala ao lobo, porque o lobo é selvagem, ele uiva ao viver a noite.

A solidão do lobo não quer dizer que ele seja a ovelha desgarrada, a solidão não excluí os demais, somente é a sobriedade enquanto as ovelhas dormem. O lobo uiva para lua, contemplando todos astros que está além dele, a busca astrológica de ir onde não se sabe. Na sua sobriedade, sabe que está a volta de algo que o ultrapassa. Seu uivo-lírico é trazer o enigma para a linguagem.

O lobo chora da impossibilidade de não tocar a lua, mas é da sua lágrima fervente que ela dissolve e se apropria, é seu uivo-lírico que torna a noite silenciosa. Todo o calor que falta é do âmbito do desconhecido, do ser indeterminado. Falta algo no ente do ser, mas o quê não se sabe, porque é noite.

O lobo é amante da Lua, pois tudo o que é do oculto é excitante. A noite esconde o mistério da fertilidade. Como algo pode se transformar em outro? Creio que só a mulher seja capaz de entender o enigma de vênus em áries. A lua e a mulher são esfinges encarnadas. Quando a mulher é minguante, a lua revela o mistério da mama.

O homem é o lobo do homem, e nisso consiste mais elogio a virtude do animal do que ao próprio homem que teme o pensamento. Terríveis mesmo são todos os pensadores que temem a noite, imitam os antigos  pois não conseguem pensar em sua solidão. Silêncio, na noite o fluxo não é de dentro, nem fora, nasce a partir de si mesmo.

Darlon Silva,
Poeta.

da série "Todo o Calor que Me Falta"

a direita; série de Ramon Gonçalves apresentada na EM México

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